Crónicas de Maputo

Pequenas páginas de um extenso álbum de memórias gravado durante um ano de intensas experiências vividas enquanto trabalhei em Moçambique no ano lectivo de 2004/2005.

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Localização: Fundão, Cova da Beira, Portugal

segunda-feira, agosto 23, 2004

Chapas e Machibombos

Ao contrário daquilo a que um Europeu está habituado nas suas capitais, não existe em Maputo um sistema público de transportes. Ou melhor, ele existe, mas a escassez de recursos e principalmente de organização é gritante. A TPM (Transportes Públicos de Moçambique) dispõe de uma reduzida frota de autocarros que atravessam a cidade nalgumas rotas que se complementam; porém não existe um horário bem definido e a consequente dificuldade em apanhar um quando se precisa leva a que os “machibombos” (designação moçambicana para o autocarro) circulem muitas vezes praticamente vazios. Tal falta de procura provoca (penso eu) uma ainda menor preocupação por parte das autoridades em organizar e modernizar o serviço, sendo (tanto quanto sei) o investimento nesta área praticamente nulo.



O reduzido nível de vida em Moçambique impede a maioria dos habitantes de apresentar um poder de compra que lhe permita possuir um automóvel, logo a questão coloca-se: Como se deslocam os moçambicanos dentro da cidade de Maputo? Para além da (ainda) gratuita opção de andar a pé, toda a estrutura de transportes assenta no mercado paralelo dos transportes semi-colectivos explorados por privados. Esta designação pomposa corresponde a uma imensidão - várias centenas - de carrinhas (Toyota Hiace na esmagadora maioria) equipadas com 12 lugares, que cruzam, num constante rodopio, todas as ruas e avenidas da cidade em percursos semi-definidos. O modo de funcionamento destas carrinhas, conhecidas por “chapas” é incrivelmente simples. Elas param para recolher ou largar passageiros em qualquer sítio e o preço, independentemente do percurso percorrido, é de 5000 Meticais (menos de 20 cêntimos). Em cada paragem o angariador recebe o pagamento dos passageiros que saem e tenta cativar quem passa a dar uma voltinha.



Uma análise desprendida leva-nos a concluir que este é um sistema quase perfeito: por uma quantia acessível à maioria dos moçambicanos (e perfeitamente irrisória para todos os estrangeiros) é possível deslocarmo-nos a qualquer hora, sem esperar quase tempo nenhum, para qualquer lado, em pouco tempo e em perfeita segurança pessoal - não há assaltos nos “chapas”!

Há contudo um senão... dada a impossibilidade de controlar o número de passageiros que entram e saem nos “chapas” em cada dia, é exigido ao condutor e ao angariador que paguem uma determinada quantia ao explorador do “chapa” (leia-se o dono da carrinha) sendo o restante o seu lucro pessoal. Assim é fácil compreender a velocidade alucinante a que os chapas andam, desrespeitando regras de trânsito (semáforos incluídos) e competindo freneticamente entre si para chegar primeiro ao cliente que espera; além disso, a perspectiva de uma maior rentabilização leva a que dentro de um “chapa” caiba sempre mais um – chegam a levar 20 pessoas! A maioria destas carrinhas apresenta muitas amolgadelas e a iminência de um acidente espreita em cada esquina.

Ou seja, apesar da segurança pessoal não ser um problema, o mesmo não sucede com a segurança física (já para não falar do conforto)... Tenho mesmo que arranjar um carro!

quarta-feira, agosto 11, 2004

Meticais

O Metical é a moeda oficial de Moçambique desde Junho de 1980. A palavra vem de Mit’ghal, termo árabe-suaíli que reporta para uma antiga unidade de medida de metais preciosos (correspondente a aproximadamente 4,6 gramas).

Trocar dinheiro é uma das primeiras aventuras de quem chega a Moçambique... duas questões se levantam de imediato:
Onde trocar? Trocar meticais num banco é quase sempre sinónimo de perder dinheiro, dado que a taxa de câmbio é geralmente menos favorável do que a que se pratica nas ruas (em tabacarias, lojas e pequenas casas de câmbio) – assim, na ausência de um contacto que nos informe qual o melhor sítio de momento, há que procurar atentamente o local onde se podem fazer trocas mais vantajosas. Apesar de já se trocarem Euros na maioria das casas, o câmbio do dólar (moeda oficiosa de Moçambique, utilizada para a maioria das transacções mais avultadas) é normalmente mais favorável.
Quanto trocar? Dada a permanente desvalorização do metical (a comparação com o dólar é disso um bom exemplo: se em 1990 um dólar americano podia ser trocado por pouco mais de 900 meticais em 1998 ele valia já perto de 10000 e hoje em dia vale mais de 23000 meticais) a troca de grandes quantias pode ser problemática, dado que a nota mais elevada que existe é de 100000 meticais (pouco mais de 4 dórares, cerca de 3 euros e meio) e transportar um maço enorme de notas não é o mais aconselhável num país em que o salário mínimo ronda o milhão de meticais.


Quando cheguei a Maputo, tratei de me informar qual o melhor sítio para comprar Meticais... Segui as indicações até ao Bairro da Polana e entrei num pequeno cubículo onde o euro se comprava a 28560 meticais (no Banco Fomento a compra era feita a 27680 meticais). Na altura pareceu-me lógico trocar uma quantidade significativa para evitar constantes deslocações à casa de câmbios. Ao entregar 220 euros recebi em troca 6283000 meticais – um envelope com 62 notas de 100000 em estado avançado de decomposição, mais alguns trocos! Sentindo-me um parente afastado do Tio Patinhas, voltei ao hotel enquanto pensava onde é que ia guardar aquilo tudo...

O dia à dia em Maputo faz lembrar um pouco os jogos de Monopólio que se faziam em criança... muitas notas com muitos zeros, preços que assustam à vista mas que não pesam na carteira. Obviamente que nos últimos anos os preços dos bens de consumo também aumentaram, mas a sua inflação não foi feita na mesma medida – resultado, o nível de vida para um ocidental que receba aqui o seu salário em dólares ou euros é bastante razoável, dado que pode adquirir tudo o que precisa a um preço relativamente baixo (principalmente se comparado com o seu país de origem).

Outro aspecto curioso são as moedas; a circulação de muitas delas foi já suspensa, dado o valor ridículo que ostentavam... as moedas de 500 e de 1000 meticais só se usam para acertar trocos, mas o seu tamanho é descomunal (quando foram lançadas eram moedas que valiam muito). Mais pequenas são as moedas de 5000 meticais (menos de 20 cêntimos), essas sim muito utilizadas, como gorjeta padrão, úteis para pequenas compras e para pagar os “chapas”... mas dos “chapas” falarei noutra altura!

sábado, agosto 07, 2004

O Cheiro de África

“Desembarquei ontem em Luanda às costas de dois marinheiros cabindanos. Atirado para a praia, molhado e humilhado, logo ali me assaltou o sentimento inquietante de que havia deixado para trás o próprio mundo. Respirei o ar quente e húmido, cheirando a frutas e a cana-de-açucar, e pouco a pouco comecei a perceber um outro odor, mais subtil, melancólico, como o de um corpo em decomposição. É a este cheiro, creio, que todos os viajantes se referem quando falam de África”

in Nação Crioula de José Eduardo Agualusa


Desde míudo que me interrogo sobre a que é que cheira África. Lembro-me perfeitamente das conversas do meu pai e dos meus tios que, recordando os tempos que passaram em Angola e Moçambique aquando da guerra colonial, falavam sempre do cheiro de África com um sorriso nos lábios. Lembro-me ainda de dizerem, que quem esteve em África nunca mais a podia esquecer e que era um sítio que a todos enfeitiçava.

Foi também por isso que me senti inquieto e ansioso ao desembarcar em Maputo na passada 5ªFeira (para além de todo o chorrilho de emoções e interrogações que acompanha quem vai iniciar uma nova aventura na vida, no meu caso, ser professor em Moçambique, nunca tendo saído da Europa); ia finalmente conhecer O cheiro de África.

Quando pisei pela primeira vez solo africano, após saltitar um pouco para recuperar o controlo das minhas pernas martirizadas por 10 horas de viagem, uma das primeiras coisas que fiz foi respirar fundo, na tentativa de descobrir o tão famoso cheiro... decepção das decepções; para além do desagradável odor do combustível com que reabasteciam a aeronave e do característico aroma a transpiração e cansaço dos meus companheiros de viagem... nada! Afinal África não cheira!

Nestes dois dias, convivi com uma miríade de visões, cheiros e sons completamente diferentes daqueles a que estava habituado... este é realmente um mundo à parte; as pessoas, os seus ritos e costumes, a sociedade... é uma realidade tão diferente e da qual ainda tão pouco conheço, que só mais tarde me atreverei a falar dela. O tal cheiro é que teima em não aparecer!

Porém, ao longo do dia de hoje, enquanto caminhava a pé pelas ruas de Maputo, fui desenvolvendo uma teoria à medida que compreendia a outra parte das conversas dos meus familiares e amigos que por aqui passaram. África é realmente apaixonante... A cada esquina, em cada rosto, há algo de mágico e marcante que, creio irá ficar cá dentro para toda a vida.

Tal conclusão poderá parecer precipitada, estando há tão pouco tempo aqui e não tendo ainda saído da cidade de Maputo; porém atrevo-me a tirá-la, reconhecendo que é uma conclusão muito mais emocional do que racional, mas é precisamente esse (na minha opinião) o feitiço que África nos lança quando aqui chegamos – um misto de emoções tão novas e tão intensas que nos marcam, mas ao mesmo tão subtis que não as conseguimos descrever... apenas sentir.

Entra aqui a minha teoria... É exactamente a impossibilidade de descrever esse sentimento que nos leva a substituí-lo por uma sensação... e existe sensação melhor que o cheiro para substituir um sentimento? Vivemos rodeados de cheiros especiais desde que nascemos: o cheiro da nossa mãe tão especial enquanto somos bébés, o cheiro da nossa casa, das flores do jardim, da nossa cidade, da nossa comida favorita, da pessoa que amamos. Conseguimos descrevê-los? Duvido. São iguais para toda a gente? Claro que não... Conseguimos esquecê-los? Jamais!

Por isso considero que não existe O cheiro de África, mas sim tantos quantos aqueles que tiveram oportunidade de a cheirar. E é esse o cheiro que nunca mais nos larga. Quem por aqui passou certamente sente saudades e provavelmente o desejo de voltar um dia nem que seja para sentir o seu “cheiro de África”