Crónicas de Maputo

Pequenas páginas de um extenso álbum de memórias gravado durante um ano de intensas experiências vividas enquanto trabalhei em Moçambique no ano lectivo de 2004/2005.

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Localização: Fundão, Cova da Beira, Portugal

quarta-feira, março 16, 2005

Uma Aventura na Catembe

No último sábado vivi um dia diferente e muito especial: após o café matinal acompanhado do sacramental pastel de nata no Continental, decidi apanhar o barco e ir conhecer a Catembe - a Catembe fica situada no outro extremo da baía de Maputo e para além da praia com um extenso areal (ideal para passear) é um local onde moram muitas pessoas que trabalham na capital; a ligação é efectuada num batelão, carinhosamente apelidado de 'catembeiro' pela população de Maputo.

Chegado à Catembe fitei ao longe a cidade de Maputo - o horizonte recortado pelos prédios marca a separação entre a baía revolta pelo forte vento que se sente e o céu carregado de nuvens - respirei fundo sentindo ter deixado o trabalho e o stresse urbano para trás e propus-me a aproveitar o dia que tinha à minha frente respirando um ar diferente. Em vez de assentar no areal junto ao cais decidi caminhar um pouco para o interior, tomando a estrada de terra batida que atravessa a planície. Dos dois lados dessa estrada o verde do capim e de algumas machambas é salpicado aqui e ali por palhotas e (poucas) casas de tijolo.

Tinha caminhado talvez uns 2 Km (começava a ponderar voltar para trás e procurar um sítio onde almoçar) quando vi junto a um pequeno carreiro que desembocava na estrada um homem que me perguntou se eu "ia para lá" enquanto apontava para o carreiro - instintivamente disse-lhe que sim, ao que ele me respondeu com um largo sorriso "então vamos juntos!..." e fomos os dois para lá!

"Num dia como o de hoje temos de ir beber o sumo!" exclamou ele entre risos... devolvi o sorriso com um ar intrigado aguardando uma explicação; "Está na altura do sumo de canhu! Nunca bebeu? Entåo há-de provar hoje!..."

Assim fomos, e enquanto caminhávamos pelos trilhos e caminhos alternativos que rasgam o mato fui conhecendo melhor o meu companheiro de viagem à medida que ele me mostrava com orgulho as diferentes partes da sua terra e partilhava comigo um pouco da sua filosofia - Willy André, nascido e criado na Catembe, trabalha hoje como agente de segurança no Aeroporto Internacional de Maputo. Fascinou-me a simplicidade objectiva do seu discurso bem como a facilidade com que me fez seu amigo. Confessou-me ter ficado admirado de me ver ali sozinho dado não ser vulgar que brancos caminhem pelo mato; aliás, segundo Willy, a própria população desconfia se vê um branco sozinho por aqueles lados, "mas se está com um de nós, então é um de nós!". Mais admirado ficou com o facto de eu não conhecer as plantas e frutas que íamos encontrando pelo caminho; foi-me então mostrando a fauna da Catembe dando-me a provar alguns frutos (Maungua, Mabsinsa e Ata de mato que acabaram por ser o nosso almoço) - como se riu quando me viu tentar partir com as mãos a casca de uma maungua de uma forma desajeitada por forma a poder comer a sua doce e leitosa polpa... aliás, todos os amigos dele que fomos encontrando (muitos carregando sacos de fruta em direcção ao cais para vender) riam para mim (e possivelmente de mim) quando lhes era dito que eu nunca tinha comido aquelas frutas.



Assim caminhámos durante mais de uma hora numa conversa permanente em que fui principalmente ouvinte tal o ritmo com que Willy debitava o seu discurso, que pela sua riqueza me levava a nã ousar interrompê-lo. Transcrevo aqui alguns dos seus pensamentos...

"Aqui no mato nunca se passa fome! - enquanto cair chuva, Deus e a natureza hão-de dar fruta e verdura para nós e para os animais..."

"O Povo tem a mania de querer ir todo viver para a cidade - na cidade é preciso pagar tudo... até o sumo eles vendem lá... o sumo e a fruta que a terra dá não deviam ser vendidas: se eu tenho eu dou, se não tenho eu peço, se ninguém tem então não se bebe!"

"A vida é um passeio... e um passeio pequeno: ou aproveitamos bem enquanto podemos ou depois já não dá!"

Chegados finalmente à casa de Willy a sua mulher apressou-se a preparar algo para nós - era a primeira vez que recebiam uma visita de alguém de fora da Catembe e impressionou-me a preocupação em que eu me sentisse bem. Duas mantas foram estendidas à sombra das árvores e foi-me oferecida um cadeira; gentilmente recusei quando vi que todos eles se iam sentar no chão e ficaram contentes quando me viram sentar junto a eles. Ao longo da tarde fomos conversando e bebendo o sumo de canhu; dado que Willy é o único elemento da família que fala português foi funcionando como tradutor daquilo que eu dizia ou explicando-me o que eles me contavam em Shangana (dialecto que por muito que tente não consigo interiorizar nem as palavras mais simples) - É uma sensação estranha ter uma família inteira a olhar para nós com um misto de curiosidade e admiração e esperando calmamente que eu terminasse para que Willy traduzisse de forma a que eles percebessem. Quanto ao sumo de canhu devo dizer que é extremamente agradável, embora após alguns copos me tenha começado a sentir um pouco zonzo... Willy sorriu quando lhe disse e contou-me que o sumo não sendo alcoólico provoca uma sensação de euforia e bem estar semelhante ao da bebida, com a vantagem de não dar 'babalaza' (ressaca)... passado algum tempo não conseguia tirar um sorriso da cara e tinha vontade de rir por tudo e por nada.



Os filhos de Willy nunca tinham visto um branco e fugiram quando cheguei lá a casa... passado algum tempo, principalmente depois de este lhes ter explicado que eu era uma pessoa como as outras e que a cor da pele não importava, lá se foram aproximando e no fim já brincavam comigo e à minha volta como se me conhecessem desde sempre - esta situação colocou-me na pele de muitos negros no mundo ocidental (aqui o 'diferente' sou eu) e deu-me que pensar... a sensação de desconforto que senti quando o Willy me disse que eles fugiram porque eu era branco foi indiscritível (nem consigo imaginar o que sentiria se não tivesse sido aceite pelas crianças... não tenho palavras para expressar o que sinto em relação à discriminação racial - principalmente quando tudo é tão simples: "somos todos pessoas como as outras"!)

Não fora o rádio roufenho que debitava música popular africana recente e esta tarde poderia ter acontecido em qualquer altura dos últimos séculos... e talvez tenha sido isso que mais me marcou e me fez meditar na viagem de regresso; enquanto o barco 'catembeiro', qual máquina do tempo me transportou de volta a Maputo e ao presente pensei na Evolução e no Progresso que todos falam e almejam... estes meses em África têm sido para mim a prova que o homem moderno, em prole desses objectivos alienantes tem esquecido em demasia as suas origens e o carácter efémero da nossa existência.

Num sábado em que praticamente não gastei dinheiro, saciei a minha sede e fome com aquilo que a terra nos dá e comunguei espiritualmente com pessoas que nunca tinha visto (e que provavelmente não voltarei a ver) de uma maneira única... à despedida, Willy disse-me que eu agora era da família ("Porque a nossa família é quem nós gostamos, não é só quem por acaso nasce na mesma casa que nós!") e que podia aparecer sempre que quisesse - não sei se tal se proporcionará, mas de certeza absoluta que jamais esquecerei este dia extraordinário.