Crónicas de Maputo

Pequenas páginas de um extenso álbum de memórias gravado durante um ano de intensas experiências vividas enquanto trabalhei em Moçambique no ano lectivo de 2004/2005.

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quinta-feira, setembro 09, 2004

Nelspruit

Por motivos de índole profissional desloquei-me na passada semana até à vizinha África do Sul, mais concretamente à cidade de Nelspruit, capital da província de Mpumalanga. Saindo de Maputo, o trajecto até à fronteira de Ressano Garcia foi percorrido com relativa facilidade, em cerca de 45 min. Uma vez chegado ao posto fronteiriço, deparei-me com um cenário ao qual já não estava habituado – um minucioso controlo da passagem, quer pessoal, quer da viatura em que me desloco... 12 anos de livre circulação de bens e pessoas na União Europeia fizeram-me esquecer as filas de espera e as burocracias associadas ao simples facto de atravessar essa linha imaginária que o homem criou entre povos e regiões; ultrapassado o balcão do lado Moçambicano, a espera e maneira como somos tratados na alfândega sul africana é substancialmente diferente da encontrada anteriormente. O rigor é muito maior (o que implica uma morosidade substancial) e o tratamento é completamente frio e impessoal – recordei logo ali o sorriso da senhora que me tinha atendido no posto Moçambicano, que inclusivamente trauteava uma canção enquanto confirmava os vistos e carimbava os passaportes.

Atravessada a fronteira tudo muda... a sensação é semelhante à de ter feito uma longa viagem e não ter percorrido apenas umas escassas centenas de metros. A primeira diferença está mesmo sob os nossos olhos: a estrada – apesar da EN4, que liga Maputo à fronteira, estar num estado satisfatório, as estradas na África do Sul são consideravelmente melhores, a sinalização abunda e o civismo dos condutores é muito maior. Porém, o grande impacto está no horizonte envolvente; toda a terra está cultivada em longas quintas bem organizadas que se estendem até onde a vista alcança, contrastando com os quilómetros de território abandonado que atravessei em Moçambique – durante os longos anos de guerra, a população fluiu maioritariamente para as cidades, particularmente Maputo, ou procurou refúgio noutros países... neste momento, a falta de meios locais e a escassez de investimento e apoios externos, leva a que uma imensidão de solo fértil esteja por explorar, situação que me confrange num país onde a fome é ainda uma realidade preocupante.

Chegado ao meu destino, queimo o tempo morto até às 14:00 (segui cedo para evitar que a confusão na fronteira fosse ainda maior) circulando pela cidade... Nelspruit é um mega shopping ao ar livre; porta sim, porta sim, grandes lojas e armazéns anunciam em enormes cartazes coloridos vendas e promoções de todo o tipo de produtos. Aqui e ali centros comerciais ao estilo americano, bem como hotéis e casinos, demonstram claramente qual é o motor económico desta cidade (que há cerca de uma década era apenas um pequeno povoado)... o comércio, a grosso e a retalho, pensado especialmente nos clientes que vêm do outro lado da fronteira, bem como dos sul africanos que rumam às praias de Moçambique.

O ambiente selvaticamente consumista é perfeitamente asfixiante e, apesar de ter sido com agrado que reentrei numa boa livraria, senti recorrentemente saudades das pequenas lojas e, principalmente, dos vendedores de rua que pululam por Maputo, apregoando os mais bizarros produtos, sempre prontos a negociar com um sorriso rasgado nas faces marcadas pelo sofrimento.

Na escola tinham-me dito que iria matar saudades da civilização; finda a curta viagem interrogo-me de que lado da fronteira ela se encontra...